Sem anúncios! Sem jogos! Sem truques!”. Essas palavras escritas à mão pelo cofundador do WhatsApp Brian Acton em um bilhete mantido em sua mesa pelo presidente e também criador da empresa, Jan Koum, davam o norte da estratégia de negócios do aplicativo desde sua criação.
Mas esses princípios podem abandonar a companhia junto com sua dupla de fundadores, avaliam especialistas, o que sinalizaria novos rumos para a empresa comprada pelo Facebook em 2014.
Koum, presidente do WhatsApp, confirmou que está deixando a empresa após sua saída ser noticiada pelo jornal americano The Washington Post. Acton já havia feito o mesmo em novembro passado.
O Post afirmou que a decisão de Koum seria por causa de conflitos sobre como conduzir o negócio e o uso pelo Facebook de dados dos usuários do WhatsApp.
A divergência interna em um dos aplicativos mais usados do mundo se dá em meio a uma pressão crescente de investidores para que Mark Zuckerberg, presidente do Facebook, prove que estava certo ao pagar US$ 22 bilhões (R$ 78 bilhões, em valores atuais) para comprá-lo.
O motivo da dúvida dos acionistas vai de encontro a uma pergunta frequente dos 1,5 bilhão de usuários do aplicativo: como o WhatsApp ganha dinheiro?
Mas a pergunta deveria ser outra. Afinal, o WhatsApp ganha dinheiro? Para a surpresa de muitos, a resposta é não – na verdade, ele dá prejuízo.
“O WhatsApp não tem hoje muita receita, se é que tem alguma”, diz a analista Debra Aho Williamson, da consultoria especializada em marketing e negócios eMarketer.
“A empresa tem agido lentamente de propósito na criação de um negócio com publicidade, e acredito que continuará a avançar bem devagar em fontes de receita para ganhar dinheiro.”
Procurado pela BBC Brasil, o WhatsApp não quis comentar o assunto.
Obstáculo ao crescimento
O aplicativo tornou-se um sucesso ao ser uma alternativa aos pacotes caros e limitados de mensagens de texto dos planos de telefonia.
Hoje, são enviadas 55 bilhões de mensagens diariamente por meio dele, de acordo com os dados mais recentes da companhia.
Uma das razões pelas quais, mesmo sendo tão popular, o WhastApp opera no vermelho é o fato de ser totalmente gratuito.
O aplicativo já foi pago no passado. Dependendo do mercado e do tipo de celular, cobrava US$ 1 para ser baixado ou uma anuidade no mesmo valor após o primeiro ano grátis. Em 2016, a empresa deu fim a qualquer tipo de cobrança.
“Isso era um obstáculo para o aumento do número de usuários, porque era preciso pagar com cartão de crédito, e muita gente não tem”, explica Leandro Guissoni, professor de marketing da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
“Receita não era uma preocupação de Zuckerberg, senão ele não teria comprado uma empresa que havia dado um prejuízo de US$ 130 milhões no ano anterior. Ele disse que esperaria o primeiro bilhão de usuários para pensar em como tornar o aplicativo rentável.”
O Facebook faz isso principalmente com publicidade, exibida de forma personalizada para cada usuário de acordo com seus gostos e comportamento. Mas essa estratégia não poderia ser replicada no WhatsApp, até agora pelo menos.
Sem publicidade
Não ter publicidade foi um dos pilares do serviço desde que surgiu em 2009. Seus fundadores desenvolveram o programa após sairem do Yahoo por discordarem do uso de anúncios pela empresa. “Koum tem um histórico de não gostar de propaganda personalizada”, explica Williamson, do eMarketer.
A empresa disse, ao explicar em seu blog por que não exibe anúncios, que “ninguém acorda um dia ansioso por ver mais propaganda, ninguém vai dormir pensando nos anúncios que verá no dia seguinte”.
Ainda que o Facebook tenha incorporado anúncios em julho do ano passado em seu outro aplicativo de mensagens, o Messenger, não fez o mesmo com o WhatsApp ainda. A saída dos seus criadores pode mudar isso.
“Eles já não estão mais lá. Não acho que haja um impedimento para a empresa, que agora tem outro dono”, avalia Marcelo Tripoli, sócio associado de marketing digital da consultoria McKinsey.
Mas o Facebook não tem pressa. Age com cautela ao testar o melhor formato de propaganda, explica o analista. “Tornar o WhatsApp rentável com publicidade não será algo trivial. Você não espera mandar mensagem no grupo da família e ver um anúncio de uma churrascaria”, diz Tripoli.
“Mas o Facebook é dono de um negócio com uma grande escala e margem de lucro e não está com a faca na garganta para mudar isso. Não precisa se arriscar a desagradar os usuários.”
Uso de dados dos usuários
Enquanto o dinheiro não entra em caixa, o WhatsApp gera outros benefícios para o Facebook. O programa contribui, por exemplo, para a forma como investidores enxergam a rede social.
“O WhatsApp torna o Facebook mais valioso, porque empresas assim são avaliadas pela base de usuários e a frequência de uso, que, no caso do WhatsApp, só crescem”, explica Tripoli.
O aplicativo também ajuda a tornar o sistema de propaganda da rede social mais eficiente. “As informações sobre o comportamento do usuário no WhatsApp são usadas para melhorar a qualidade dos anúncios personalizados exibidos no Facebook”, diz Rodrigo Tafner, mestre em gestão internacional de negócios e coordenador do curso Tech da ESPM.
Isso significa que o WhatsApp informa ao Facebook há quanto tempo uma pessoa usa o aplicativo de mensagens, com que frequência faz isso e qual é a versão do programa que está instalada no celular.
O Facebook também tem acesso ao número de celular registrado no WhatsApp, o país em que o usuário está e o tipo de telefone e sistema operacional usados. Mas a rede social não tem acesso a outros dados, como a lista de contatos existente no telefone dos usuários e o conteúdo das mensagens.
“Ao conectar seu número de celular com os sistemas do Facebook, ele pode fazer sugestões melhores de amigos ou mostrar anúncios mais relevantes para você”, diz o WhatsApp ao explicar como e porque compartilha dados dos usuários com empresas controladas pela rede social. “Por exemplo, você pode ver o anúncio de uma empresa com a qual você já tem contato em vez de uma de quem você nunca ouviu falar.”
O WhatsApp não compartilhava a princípio dados de seus usuários com o Facebook, algo que seus fundadores garantiram que não ocorreria ao vendê-lo. Isso mudou um ano e meio depois da aquisição, quando atualizou seus termos para permitir essa possibilidade.
Isso levou a uma investigação do governo britânico, que concluiu que o aplicativo estaria violando leis de privacidade do país ao compartilhar esses dados. A empresa também estava sob o escrutínio de autoridades na França e na Alemanha pelo menos motivo
O WhatsApp esclareceu que não havia compartilhado informações de usuários até então, algo confirmado pelo governo britânico, e assumiu o compromisso de não fazê-lo até estar em conformidade com regras estabelecidas pela nova lei europeia que regulamenta a questão.
A legislação entra em vigor em 25 de maio. Ela não veta o compartilhamento de dados, mas estabelece critérios para como isso deva ser feito.
Criptografia
Um dos principais pontos de discórdia que teriam levado à saída de Koum seriam as supostas tentativas da rede social de obter ainda mais informações do WhatsApp, de acordo com o The Washington Post.
A rede social estaria tentando enfraquecer a tecnologia de criptografia usada para proteger o conteúdo das conversas travadas pelo programa, o que impede que outras pessoas além do remetente e destinatário saibam o que é falado ali.
O Facebook não quis comentar os motivos que levaram o executivo a deixar a empresa, mas não refutou as alegações, disse o jornal.
A empresa de Zuckerberg se encontra hoje em uma situação delicada, após vir à tona que dados de milhões de usuários da rede social foram coletados pela consultoria Cambridge Analytica.
A consultoria foi acusada de usar essas informações para influenciar o resultado da eleição presidencial americana de 2016 e a votação que determinou a saída do Reino Unido da União Europeia, o Brexit.
“Zuckerberg estava sendo paciente com (a baixa) receita pelo benefício de uso dos dados do WhatsApp, mas e agora? Ele se comprometeu diante do Congresso americano a trabalhar por melhores políticas de privacidade”, questiona Guissoni, da FGV, para quem o escândalo cria dificuldades para a rede social e seu criador.
“Fazer algo que vá contra isso pode ter consequências muito negativas, e, sem poder usar os dados para fazer anúncios personalizados, a empresa fica sem um modelo de receita claro.”
Aplicativos para empresas
O aplicativo testa outras saídas enquanto isso. Em janeiro, lançou o WhatsApp Business, voltado para pequenas e médias empresas.
Essa versão do programa oferece algumas vantagens, como garantir a autenticidade da conta, trazer informações úteis sobre a empresa para os consumidores e informar a ela como seus clientes se comportam.
Em uma reunião recente com investidores, o Facebook divulgou que 3 milhões de pessoas usam o WhatsApp Business atualmente.
Também há um aplicativo piloto para grandes companhias. Ambas são testadas no Brasil, entre outros mercados.
São alternativas gratuitas, mas o diretor de operações do aplicativo, Matt Idema, disse ao jornal americano The Wall Street Journal que está nos planos “cobrar de empresas no futuro”.
Sistemas de pagamentos
O WhatsApp também testa um sistema de pagamentos na Índia, onde tem 200 milhões de usuários, que permite às pessoas enviar e receber dinheiro por meio do programa.
O aplicativo de mensagens WeChat já oferece esse serviço na China. E o indiano Paytm é um concorrente no mercado onde a novidade está sendo testada.
“Se algo der certo na Índia, vai dar certo em qualquer mercado, mas, se fizer um estrago, terá sido em um país só”, diz Taffner.
“Os acionistas têm sido pacientes, porque sabem que é um negócio com um potencial grande e que, com tantos usuários, na hora em que tiver cobranças ou anúncios, terá um retorno muito alto.”
Uma estimativa feita pela consultoria Trefis Team, publicada pela revista Forbes em novembro, estima que o WhatsApp pode vir a ter uma receita de US$ 5,2 bilhões a US$ 15,6 bilhões se adotar as estratégias usadas por outros aplicativos de mensagens.
Concorrentes como Line e WeChat faturam a partir de um mix de publicidade, jogos, serviços de pagamentos e compras feitas por meio do programa.
Isso iria contra os valores da empresa, mas eles podem estar ficando no passado, junto com seus fundadores, avalia Guissoni: “Não vai ter outra alternativa, vão ter que abrir mão de alguma coisa”.
Fonte: G1