O endereço exato em que se encontra Isabela Oliveira Conde, 36 anos, nos foi fornecido uma hora antes da entrevista. Apenas a polícia, a família e a reportagem do CORREIO tiveram acesso a essa informação. Depois de sobreviver a 69 facadas na noite de 28 de fevereiro, ela ainda está longe de ter a sua vida de volta. Com dois dos seus três algozes soltos, Isabela tem que conviver com o isolamento: não pode trabalhar e não se comunica com os amigos.
“Essa parte também tem sido muito difícil. Sei que nasci de novo, mas quero voltar a ter uma vida normal”, clamou a fisioterapeuta, que trabalha em um hospital no bairro de Nazaré. Há pouco mais de uma semana, na primeira noite do Carnaval deste ano, Isabela foi vítima de um plano perverso do seu próprio namorado, Fábio Barbosa Vieira, 37, que contratou dois homens para matá-la a golpes de faca.
Com o olho direito tamponado e pontos de costura espalhados por todo o corpo, ela recebeu a reportagem em seu “esconderijo” e contou detalhes dos momentos de terror que enfrentou. Forte, sem esboçar choro, agradecida a “Deus, São Lázaro e a todos os santos e orixás”, Isabela conversou com a gente por mais de uma hora. Apesar de tudo, se mostrou tranquila. Não quer vingança. Receosa de que ele volte a fazer o mesmo com outras mulheres, pede apenas Justiça. “Um homem desses não pode ficar solto por aí”.
Todos os dias, Izabela costumava sair de casa com seu carro, pegava o namorado em casa, no Alto do Saldanha, em Brotas. Ele então a deixava no trabalho enquanto ficava com o carro. Como ultimamente estava disposta a terminar o relacionamento, começou a se afastar. Fábio, apesar de atencioso, era muito ciumento, possessivo.
Na última quinta-feira de Carnaval, foi direto para o trabalho. Ele questionou e pediu o carro emprestado. Isabela não negou. Quando foi busca-la no hospital ao fim do expediente, dois homens estavam no banco de trás do carro. “São meus amigos. Eles vão me ajudar na venda de uns abadás”, teria dito Fábio. Minutos depois, esses dois homens a estavam atacando a mando de Fábio. “Foi muito soco, pancada, enforcamento, facada, tudo que você imaginar. Me senti um picadinho. Estou toda lesionada”, mostrou a vítima.
Isabela trabalha em uma UTI. É fisioterapeuta respiratória. Tem a ideia clara dos pontos vitais do corpo humano. Mesmo na hora do ataque, conseguiu pensar sobre isso e se defender. “A jugular, as carótidas, eu dei um jeito de proteger”. O banco do carro também serviu de escudo para a “área nobre”, no caso, o abdômen. “Eu escorreguei para a frente do banco do carona e me encolhi toda, protegendo as áreas vitais do tórax e abdômen”. O mais impressionante: Isabela diz que não sentiu dor. “Não senti dor nenhuma. Se eu te disser que senti dor eu tô mentindo”.
‘Agiliza isso aí’, pediu Fábio
Era por volta das 20h30 quando o ataque começou, em plena avenida Bonocô. Os dois homens que estavam atrás a seguraram. Ela ainda pediu ajuda: “Fábio, eles estão tentando me assaltar. Que tipo de gente você colocou no meu carro?”, perguntou. Isabela não acreditou quando olhou para o lado e viu o próprio namorado dirigindo calmamente e bem devagar. “Ele estava tranquilo. Um cínico!”.
Isabela conta que tentava manter a calma e, enquanto tomava facadas, chegava a conversar com os criminosos. “Eu pedia tranquilidade, dizia que eu não era uma pessoa ruim, que tinha uma filha pra criar, ofereci dinheiro, fiz isso na maior calma. E em momento algum eles deram uma trégua”, lembra. Enquanto isso, Fábio pedia pressa aos comparsas: “Ele dizia: ‘adianta logo isso aí. Essa mulher não para de falar. Agiliza aí pra ela morrer logo’.
Os criminosos não queriam que as pessoas que passavam de carro vissem. Por isso, se desesperaram quando Isabela tentou abrir a porta do carro e a luz interna acendeu. “Nessa hora eu já estava lavada de sangue. Se alguém visse podia pegar pra eles”. Isabela chegou a perguntar porque o namorado estava fazendo aquilo. Ele respondeu: “Porque você não gosta de mim”.
Em determinado momento, já na BR-324, Isabela resolveu se fingir de morta. “Quando vi que não tinha jeito, protegi bem o tronco, fiz apneia (prendeu a respiração) e fiquei quieta, toda mole”. Foi quando Fábio pediu que eles se certificassem da morte antes de tirar o corpo do carro. “Ele não queria concluir o crime fora do carro. Já queriam chegar no local e me jogar. E diante de tantas facadas, tiveram certeza que eu tinha morrido”.
Quase chegando em Simões Filho, Isabela foi arrastada até a ribanceira, onde foi jogada. “Nesse momento pensei que tinham feito uma cova e iam me enterrar. Eu tava de olho fechado e fiquei esperando jogarem a terra. Pensei: ‘Não vou conseguir sobreviver’. Vi que não jogaram nada e fiquei ainda um bom tempo quieta”.
Isabela conta que se arrastou no mato “como um bicho” e ficou feliz quando avistou a luz dos carros. “Pensei: ‘Deus, é a minha chance! Eu vou ter que ficar em pé e você vai me ajudar’!”. Isabela conta que andou por entre os carros, que reduziam a velocidade até chegar mais perto dela e, em seguida, desviavam. “Eu fui para o meio dos carros porque tava ali para o tudo ou nada, senão ia sangrar até morrer. Os carros passavam por mim como se eu fosse um espírito. Eu olhava para mim e me perguntava: será que eu já morri?”.
Um caminhão parou e ela subiu o primeiro degrau da porta, se pendurou na janela e contou tudo a ele. “Falei tudo rápido. Disse, inclusive, o nome de Fábio e falei que ele que tinha feito tudo. O motorista simplesmente disse que alguém ia me ajudar e arrastou o caminhão. Ali perdi a fé na humanidade”. Isabela se arrastou de volta até o guard-rail, deitou no chão e levantou as pernas.
“Para mim eu tinha chegado ao fim, mas levantei as pernas para o sangue chegar ao meu coração e eu durar mais tempo. Conversei com Deus, com os orixás das estradas, com o espírito de minha avó, com tanta gente”. Nessa hora, Isabela conseguia fazer apenas um movimento com uma das mãos. Foi quando um casal parou em uma moto e pediu ajuda. “Dois anjos que Deus enviou”.
A ambulância da Via Bahia levou Isabela para o Hospital do Subúrbio. “Cheguei no hospital parecendo um monstro. Fizeram uma tomografia e não acreditaram que eu não tive fratura. Minha face tava toda inchada por conta do enforcamento”. No Hospital, a família de Isabela ligou para Fábio e forjou a morte dela. Ao mesmo tempo chamou a polícia. A intenção era prendê-lo em flagrante.
Fábio chegou ao hospital e até abraçou familiares da vítima como os estivesse consolando. Ao ver a polícia, tentou fugir, mas a própria população o impediu. “Minhas irmãs, meus irmãos, o povo todo, a polícia, foi todo mundo atrás dele”. Fábio foi preso, levado para a Delegacia da Mulher (Deam-Periperi) e em seguida encaminhado para o Centro de Observação Penal (Cop), na Mata Escura.
A titular da Deam, Simone Moutinho, preferiu não dar detalhes das investigações e limitou-se a dizer que ainda não identificou os dois foragidos. A delegada confirmou apenas que Fábio, mentor do crime, pagou R$ 500 para cada um dos comparsas.