Está chegando à televisão uma série brasileira muito especial: Os Irmãos Freitas. Concebida inicialmente como filme, ela foi escrita por alguns dos roteiristas mais talentosos do cinema nacional (Walter Salles, Sérgio Machado, Marcelo Gomes, Gabriela Almeida), até os criadores perceberem que a longa história se encaixaria melhor no formato de série.
A biografia apresenta a história do lutador Acelino “Popó” Freitas (Daniel Rocha), filho mais novo de uma família baiana que já tinha outro lutador, famoso antes deles: Luis Cláudio (Rômulo Braga). No entanto, à medida que a carreira do irmão mais velho entrou em declínio, o mais novo começou a despontar. A série pretende narrar a rivalidade entre os dois, além da disputa pelo afeto da mãe.
O AdoroCinema conversou em exclusividade com os dois diretores, Sérgio Machado (Cidade Baixa) e Aly Muritiba (Para Minha Amada Morta), sobre o projeto:
Este é o segundo projeto consecutivo que você dirige sobre boxe [após A Luta do Século], mesmo tendo admitido não ser um grande fã do esporte.
Sérgio Machado: Na verdade é o terceiro na carreira, porque em Cidade Baixa o Lázaro Ramos interpreta um boxeador. Tem uma coisa no boxe que me atrai muito mais que o esporte em si. O boxe tem uma coisa mais cinematográfica como se vê em Scorsese, Hitchcock, Coppola, John Huston, Kubrick. O cinema do boxe é grandioso, ele funciona como uma metáfora da vida: são duas pessoas se enfrentando numa batalha de vida ou morte. É um esporte cinematográfico, e quem luta boxe sempre está no fio da navalha. Não tem uma história de boxe, entre os grandes, que envolva lutadores de classe média, todo mundo que luta boxe precisa daquilo para sobreviver, e isso faz com que eu tenha simpatia pelo personagem. Talvez seja isso, mas eu não sou um fã de lutas, nem MMA.
A série veio de um desejo de fazer ficção. Primeiro existia um projeto de longa-metragem que eu escrevi junto com o Walter Salles, sobre o Popó. Mas percebemos que o filme era longo demais, não caberia num longa, por mais que espremesse. Quase abandonamos o projeto depois de trabalhar uns 4 ou 5 anos no roteiro. Primeiro eu trabalhei com o Walter, depois com Marcelo Gomes, Gabriela Almeida… Umas dez pessoas trabalharam nesse roteiro. Quando estávamos quase desistindo do projeto o Fabiano [Gullane] falou: “Se não cabe como longa, por que não faz uma série? Então resolvemos passar para a série”.
O Popó está muito presente no imaginário popular, mas não o irmão dele, o Luís. A série tem como objetivo honrar o lutador menos conhecido?
Sérgio Machado: Na verdade, essa história é uma tragédia grega. São dois irmãos num triângulo amoroso, disputando o amor da mãe. O boxe existe como um plano de fuga para buscarem o amor da mãe. O Luís é moldado para se tornar um campeão mundial, ele é um gênio, tem um talento absurdo. Desde criança as pessoas o veem como bom, craque, gênio. Já o outro, mais novo, ninguém imaginava que iria muito longe. De repente, o mais velho não consegue chegar no topo e o mais novo ocupa o espaço dele. É uma história de amor, de ódio, de inveja.
Para fazer esse roteiro, eu estudei muito o conceito do Lacan sobre ódio e enamoramento. Isso é o que sente o mais velho quando vê o mais novo pela primeira vez sendo amamentado. Você ama aquele cara, mas o odeia por roubar o seio materno, e isso é muito forte.
Existe uma responsabilidade particular de retratar uma pessoa viva, presente. De que modo você trabalhou isso com os atores?
Sérgio Machado: A gente respeita muito a história do Popó. Estivemos perto dele o tempo inteiro, pesquisando com ele, com o Luís, com a mãe e a família. A gente fez uma pesquisa extensiva de matéria de jornal, de televisão. Mas eu tenho consciência de que se trata de um personagem de ficção inspirado no Popó, não é o Popó.
Existem traços específicos do Popó real ali, mas de modo geral não tivemos a preocupação em copiar gestos ou elementos típicos dele. Inclusive mudamos o nome de algumas pessoas nessa história, exceto o Popó e a mãe, porque a gente está preocupado em contar uma história, e não em fazer um documentário.
Como funciona o processo de direção em dupla? [No set de filmagem visitado pelo AdoroCinema, duas cenas eram filmadas paralelamente, no mesmo espaço, uma por cada diretor].
Sérgio Machado: Preparamos o projeto todo juntos, e agora estamos filmando em paralelo. A gente filmou o mesmo episódio, metade das cenas um, a outra metade, o outro. O Walter, de alguma maneira, supervisionou tudo. No começo a gente filmou muita coisa juntos, com duas unidades filmando a mesma cena, como nas cenas de luta, por exemplo.
Como escolheram o Daniel para o papel do Popó?
Sérgio Machado: A gente fez muitos testes. Claro que partimos do desejo de ter um baiano no papel. Encontramos um ator chamado Felipe Veloso, um baiano que acabou entrando no elenco também. O Rômulo foi de primeira escolha para o Luís, mas com o Popó foi difícil. A gente fazia testes e não achava, começou a dar medo. Então chegou o Daniel cheio de vontade, além de saber lutar. Ele foi campeão sul-americano, conhece o boxe profundamente, e conhece o estilo do Popó. Para mim, foi uma felicidade ter encontrado esse cara.
Ele perdeu 12kg pra ficar com o físico igual ao do Popó. No primeiro dia de filmagem, a gente ia fazer o dia que o Popó emagrecia para a luta, e o Daniel perdeu 4kg, foi uma coisa absurda. Ele estava se sentindo mal, quase desmaiando, mas queria se sentir exatamente como um lutador se sente quando desidrata. Então foi um presente ter essa dupla de atores. O maior presente deste projeto é o elenco.
Como você vê a transformação da linguagem neste projeto, do cinema para a série?
Aly Muritiba: Esse tempo de desenvolvimento fica muito evidente quando você lê os roteiros. São os roteiros mais maduros que eu já li, e olha que eu leio roteiros pra caramba, porque eu sou professor de roteiro e faço muita consultoria. São os roteiros mais maduros que eu já li na história da dramaturgia brasileira.
Tem um refinamento, uma sutileza muito grande, e o arco é super bem desenvolvido. Tudo está presente no conteúdo deste roteiro escrito a várias mãos e olhares que trabalharam juntos ao longo de cinco anos de cooperação e desenvolvimento.
De que maneira a série equilibra as imagens do Popó e do Luís?
Aly Muritiba: Para mim, o protagonista da primeira temporada não é o Popó, e sim o Luís. A trajetória dele tem um arco de mais fácil identificação, o público vai se prender facilmente a ele. O Luís é um personagem desconhecido, e o Rômulo Braga, que vive o Luís, é bastante desconhecido na televisão. Ele tem muita experiência no cinema, mas na TV ninguém o conhece. Por isso, acho que esse personagem tem tudo pra ser o protagonista da primeira temporada e preparar o terreno para que o Popó seja o protagonista da segunda. Mas a gente não precisa dizer isso pro Daniel!
Os dois têm pesos muito equilibrados na história, embora vivam trajetórias distintas. A gente começa a série com o Luís sendo a grande promessa do boxe brasileiro, enquanto o Popó é apenas um menino jovem, deslumbrado, que quer de qualquer maneira ganhar o respeito do irmão e da mãe. Ele usa o irmão como uma referência. Ao longo desse percurso, a gente vê a ascensão de Popó e a decadência do Luís. É muito bonita a trajetória dos dois personagens que começam juntos e se separam.
Como você preparou com os atores para interpretarem lutadores?
Aly Muritiba: Havia uma pesquisa enorme feita pelo Sérgio e pela equipe de roteiristas. O Sérgio é muito amigo do Popó e do Luís Claudio, é quase da família, então boa parte da preparação estava contida no roteiro. Houve uma preocupação muito grande também por parte do Daniel, que já era um lutador, mas tinha um estilo totalmente completamente diferente daquele do Popó. Então o Daniel fez aula com o Popó, treinou na academia dele para aprender o estilo do cara.
Mesmo assim, todo mundo tinha consciência de que isso é uma obra de ficção. Então só usamos aquilo que nos interessava As coisas que não interessavam para a série foram simplesmente ignoradas, e pedimos para os atores ignorarem também.
Você estava dizendo durante as filmagens que nem todo o cuidado com a fotografia da série seria percebido na tela da televisão. Existe um trabalho estético diferente pelo fato de ser uma série?
Aly Muritiba: A concepção é muito cinematográfica. Trabalhamos bastante com o plano sequência, e tivemos o cuidado de fazer coberturas, porque a gente sabe que há um limite de tempo de exibição na televisão. O episódio precisa ter de 40 a 50 minutos, não dá para se fazer um episódio de uma hora e meia na sua cabeça porque isso não vai ser aceito.
Mas a concepção estética é cinematográfica, aplicada aos cuidados que deve se tomar quando se está trabalhando para TV. É preciso falar uma linguagem não apenas gramatical no tocante a enquadramento e tal, mas algo um pouco mais direto para que o espectador em geral entenda, capte o que se quer com a cena. É preciso tomar esses cuidados e fazer cobertura de cena, porque se na hora da montagem a coisa estiver muito longa, você deve ter um plano B. Não dá para voltar e refilmar a cena.
Fonte: Msn